terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Propaganda, Felicidade e Consumo

O presente artigo mostra, como Jean Baudrillard, analisa a relação da felicidade, propaganda e consumo no livro “A Sociedade de Consumo”. Faz-se também uma relação com posições dos apocalípticos e a postura dos integrados conforme análise de Umberto Eco. A categoria de Jürgen Habermas, mundo vivido, é mostrada como uma possibilidade de superar o consumismo da cultura industrial.

    O que pode trazer felicidade no mundo contemporâneo? Sobre esta questão, o filósofo francês Jean Baudrillard é claro: “(...) o miraculoso do consumo serve (...) de sinais de felicidade (BAUDRILLARD, 1995, pág. 22). Consumir é a atividade pregada como o que pode trazer as satisfações e realizações últimas da existência humana nas sociedades baseadas na acumulação de riqueza pelos donos dos meios de produção. Consumo e felicidade associam-se quando a cultura industrial mostra, em suas produções (novelas, filmes, propagandas, videoclipes), personagens realizados porque adquiriram algum objeto material. A realização plena está condicionada a ter algo que  se torna também espiritualmente necessário. Ter a roupa da última moda, o modelo mais novo do carro, o cartão de crédito ilimitado, fazer a viagem ao destino mais procurado, ir à festa mais esperada, adquirir o celular e o computador pessoal mais avançados representa muito mais do que prestígio, riqueza e poder. Significam objetos através dos quais se podem alcançar os modelos de felicidade. Os reclames da cultura industrial são evidentes: quando se tem se é feliz com os amigos, a família e o trabalho. A isso Baudrillard faz uma comparação.
 "Os indígenas da Melanésia sentiam-se maravilhados com os aviões que passavam no céu. Mas, tais objetos nunca desciam até eles. Só os Brancos conseguiam apanhá-los. A razão estava em que estes possuíam no solo, em certos espaços, objectos semelhantes que atraíam os aviões que voavam. Os indígenas lançaram-seentão a construir um simulacro de avião com ramos e lianas, delimitaram um espaço que iluminavam de noite e puseram-se pacientemente à espera que os verdadeiros aviões ali viessem aterrar"(BAUDRILLARD, 1995, pág. 21).

    Assim, é a sociedade de consumo. Pensase que, imitando o consumo dos personagens das produções da cultura industrial, alcançase a felicidade da qual estes estão interpretando ter. Isso é análogo ao que fazem os indígenas da Melanésia: imitam os aeroportos pensando que assim vão conseguir o pouso dos aviões. Quem consome acreditando que adquiriu a felicidade pode não encontrá-la e assim cair num vazio que só um novo consumo pode resolver. Assim, há uma associação necessária entre ter os objetos e a realização última da existência humana. Isso porque fazer a viagem desejada, ter o carro mais novo, o celular mais avançado, a roupa da última moda não se vai necessariamente ser feliz. O indivíduo pode ter tudo isso que ele considera indispensável para sua realização e continuar com os problemas que o separa da possibilidade de alcançar sua felicidade. É como achar que, adquirindo-se os frascos, leva-se também as verdadeiras essências, mas a existência dos primeiros não necessariamente está condicionada a dos segundos.

    Como a cultura industrial confunde os valores da felicidade e consumo? Baudrillard mostra quatro exemplos que revelam a lógica dessa estruturação: o kitsch, o gadget, o lúdico e corpo. O primeiro é o conjunto de artefatos da tradição de uma determinada cultura que se torna mercadoria de consumo. Fora do contexto de seu significado histórico, o kitsch se transforma em adornos, bugigangas, quinquilharias como estatuetas, bibelôs, colares, biscuit. São objetos que, além de perder seu significado por estarem sendo comercializados fora de seu contexto, não se têm valor de uso. É o consumir por consumir. Para assim, tentar incansavelmente encontrar alguma realização plena. A reciclagem cultural industrializada caracteriza também o kitsch. O que era antigo é relançado como novo alimentando o ciclo vicioso de seguir a moda das tendências atuais mesmo que sejam velhas novidades. Isso garante a circulação do mercado que impossibilita o acúmulo de riqueza pelos consumidores.

    Da mesma forma, mostra-se também o gadget. Alguns produtos que tem utilidade prática passam a ter mais valor pelos seus acessórios que tornam tão importantes ou até mais do que sua função principal. Isso leva a lembrar dos telefones celulares. Para que servem mesmo? Para fazer contas, anotar lembretes, tirar fotos, jogar, ver as horas, assistir vídeos, despertar, passar mensagens, trocar arquivos? Ou para fazer ligações com outras pessoas que estejam em outros telefones? Telefonar, função principal, se tornou a que menos agrega valor ao celular. Uma ironia que mais uma vez revela a inversão de valores que a cultura industrial articula ao incentivar o consumo como forma de alcançar a felicidade.

    Até mesmo as relações mais subjetivas do indivíduo com outros e consigo mesmo são coisificadas. A insistente busca do corpo perfeito mostra isso. Não é só na academia de ginástica que se busca a estética corporal, mas também nas relações amorosas. Busca-se como parceiro, principalmente das relações mais perecíveis que para muitos são as mais importantes, quem tem o corpo mais perfeitamente enquadrado nos padrões de beleza da cultura industrializada. Esbelta, silhueta contornada, seios e quadris salientes são as características que se desejar consumir no mercado sexual contemporâneo. Por isso, a conquista destas características significa a possível conquista do outro. Não só todo um setor da economia dos produtos light, de emagrecimento e de exercícios físicos é movimentado, mas a idéia de que com a parceira ou parceiro do corpo perfeito vai encontrar-se felicidade no amor. Seria esse o critério principal? Ou o principal mais uma vez foi trocado pelo acessório?

    Outra característica desnorteada da sociedade de consumo é a importância do lúdico. A realização plena se tornou fuga da realidade. Como ser feliz nesta vida fugindo desta própria? Mas é essa contraditória conjugação que leva os indivíduos encontrar nas festas, passeios, novelas, filmes, músicas, entorpecentes, os raros momentos de felicidade. A catarse tornou-se única possibilidade de realização. Só fugindo desta vida estressante, conflituosa, traumatizante se pode ser feliz. O lúdico é a saída. Trabalha-se seis dias da semana para simplesmente poder ter condições de desfrutar um sábado nas festas, um domingo nas praias e banhos e feriados em viagens. E quanto mais se desfruta mais traumatizado pode tornar-se e acabar mais viciado neste processo catártico. Assim também mostra Max Horkeheimer:
“Divertir-se significa que não devemos pensar, que devemos esquecer a dor, mesmo onde ela se mostra. Na sua base do divertimento, planta-se a impotência. É, de fato, fuga, mas não, como pretende, fuga da realidade perversa, mas sim do último grão de resistência que a realidade ainda pode haver deixado” (LIMA, 1990, pág. 182).

    Como então conseguir esta miraculosa associação de valores que, por vezes, são contraditórios? Como convencer que felicidade na vida é fugir desta? Que os acessórios do produto são mais importantes do que o principal? Que os objetos sem utilidade têm valor? Que o critério das relações sexuais é o consumo do corpo perfeito? Que a realização plena, que é também subjetiva, está no consumo objetivo de materiais? Baudrillard é enfático: "a publicidade constitui um dos pontos estratégicos de semelhante processo" (BAUDRILLARD, 1995, pág. 134). Para ele, esta e o jornalismo se tornaram atividades míticas essenciais para orquestrar a sociedade de consumo.

    A associação não falsa e, ao mesmo tempo, não verdadeira entre produto e felicidade é mítica como a supra-realidade da arte. Os publicitários não mentem, mas realizam relações absurdas, possíveis de acontecer tão somente na ficção. Os produtos de consumo estão associados aos prazeres de, por exemplo, pertencer a um grupo social, de ter um (a) parceiro (a) sexual, de degustar um alimento, de enfrentar o medo ou de aliviar o estresse. Bebendo a cerveja boa, você estará acompanhado de mulheres boas - assim a bebida é associada ao prazer sexual. Comprando celular de última geração, você ficará por dentro da moda tecnológica - assim o aparelho é associado à inclusão social. Tendo um ar condicionado de uma determinada marca, você sentirá o mesmo prazer de degustar uma cerveja estupidamente gelada, desta forma, o apelo é para a alimentação. Viajando à capital dos esportes radicais, você sentirá o gosto da adrenalina - assim resgatese o instinto do medo. Passando o final de semana no parque aquático, você alivia todas suas tensões - desta maneira, realiza-se a catarse.

    A publicidade, através das propagandas e das notícias publicitárias, realiza uma relação sutil e indireta entre o consumo, o prazer e a felicidade. Não se promete alcançar coisa alguma através dos produtos - porque até mesmo se poderia caracterizar como delito de propaganda enganosa -, mas se mostra que pessoas que alcançaram a realização e satisfação plena quando consomem ou simplesmente são felizes (independente de qualquer relação com o consumo) no momento que estão consumindo. Não se produz um anúncio de um carro prometendo que, com este, irá conquistar parceiros, mas se mostra alguém que enche o veículo de lindas mulheres quando trafega numa estrada deserta no filme da publicidade de um carro. Não se vende um leite condensado prometendo que este irá tornar as famílias felizes, mas se mostra tão só famílias felizes quando o provam nos reclames.

    O que importa não é acreditar ou não nos produtos como lembra Baudrillard:

"Sem acreditar neste produto, acredito, porém, na publicidade que me deseja fazer crer. É estória do Papai Noel: as crianças não mais perguntam sobre sua existência e não relacionam esta existência com os presentes que recebem como se se tratasse de um jogo de causa e efeito. A crença no Papai Noel é uma fabulação racionalizada (...). O Papai Noel em tudo isso não tem importância e a criança nele só acredita porque no fundo não tem importância” (LIMA, 1990, pág. 294)

    A sedução da cultura industrial tenta tornar o consumidor seu refém. “Ele não é o rei!” (CONH, 1997, pág. 172), como afirma Theodor Adorno. A tradicional lei da oferta e da procura já não depende tão somente do gosto dos consumidores porque quem tenta criar novas necessidades é a cultura industrial. A mágica associação entre prazer, felicidade e consumo procura transformar novidades tecnológicas em algo indispensável para a vida das pessoas. Como tornar o liquidificador num objeto de primeira necessidade em quase todas as cozinhas do mundo inteiro? Como vender uma nova tecnologia como algo indispensável para a vida de quem nunca a possuiu? Este é o jogo de sedução da cultura industrial que tira do consumidor quase todos seus poderes de demandar os produtos do mercado.

    A incessante decepção de encontrar a felicidade no consumo leva a indústria sempre produzir lançamentos para trocar a insatisfação por uma nova necessidade. Como fabricar constantemente novidades, principalmente na cultura industrializada, correndo o mínimo risco de fracasso econômico? A saída é a reciclagem cultural. O novo passa ser nada mais do que o velho numa nova versão. Assim, comprovam as versões de músicas. Composições consagradas das décadas de 70 e 80 estão hoje sendo remixadas. A moda faz um constante apelo para os hábitos retrôs das décadas de 60 e 70. As calças boca de sino da Era Disco vem e voltam com novas roupagens nas coleções. O estilo hip, hora por outra, volta a ser influência da primavera ou do verão. Os remakers são um apelo constante da indústria cinematográfica e televisiva. Todavia, a reciclagem cultural não acontece só quando se retorna ao passado. As fórmulas de sucesso da Industria da Cultura são manjadas. Filme ou novela com final feliz, balada com refrão forte, repetitivo e envolvente (do tipo iê, iê, iê) aparecem constantemente no topo do mais consumido.

    Será que as fórmulas prontas só servem de segurança para o sucesso? Ou será que servem também para tornar o consumo mais fácil? Na cultura industrial, pensar muito não é a regra. Por vezes, quando menos intelectualizado o consumidor mais fácil seu convencimento. Por isso, conhecimento é sinônimo de enciclopedismo. Tudo se responde nada se explica, como nos programas de tv e rádio de perguntas e resposta, nos softwares de computadores pessoais, como nos vestibulares de questões objetivas.

    O que fazer diante desta realidade? Tentar tirar proveito tentando colocar-se no topo da manipulação? Ou lamentar a derrota já consolida dos verdadeiros valores humanísticos? Umberto Eco chama estas duas posições, respectivamente, de integrados e apocalípticos. Os primeiros vibram e deslumbram com a evolução tecnológica às vezes de maneira até etnocêntrica. Os segundos não vêem saída para este mundo desde quando o projeto do Iluminismo foi usurpado, na Revolução Francesa, pela burguesia e o do Socialismo, no stanlinismo, pela tecnocracia. Para eles, não há mais o que fazer além de esperar do fim do mundo.

    Indo além dos apocalípticos e integrados, como pensar as possibilidades de construir um mundo alicerçado em relações que emancipem os sujeitos sociais? Uma primeira reflexão: será que a vida dos indivíduos está resumida ao consumismo da cultura industrial? Jürgen Habermas defende o mundo vivido como o verdadeiro espaço onde se tecem as relações sociais, resolvem-se os problemas mais imediatos e se revela a racionalidade. É, no cotidiano, que o homem transforma seu meio atribuindo significados, através do trabalho. Conhece a realidade, através da linguagem. E relaciona-se com os outros, através da ação comunicativa. São estas então as três demonstrações da racionalidade que se pensa ter perdido na Revolução Francesa ou se imagina está resumida às novidades tecnológicas. Emancipar no mundo vivido significa transformar as ações ordinárias e instrumentais em ações argumentativas e, desta forma, mobilizadas. Conhecer é ir, além do aprendizado. É um processo que, através dos constantes erros e acertos, pode transformar a realidade.

Autor: Ismar Capistrano Costa Filho. Jornalista e professor de ensino superior, bacharel em Comunicação pela UFC, especialista em Docência do Ensino Superior pela UCAM e mestrando em Comunicação pela UFPe. Este artigo foi publicado na Revista Lectura, no3. Fortaleza: Ed. Evolutivo, 2005, ISSN 1806-5503

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