quarta-feira, 16 de março de 2011

A ansiedade das coisas

   Em tempos mais sãos do que o nosso um homem começava a sentir nostalgia quando estava avançado na terceira idade, entrevendo já a última curva da vida. Hoje em dia a nostalgia é motivo de ansiedade para todos, democraticamente; até mesmo os adolescentes, garantem-me, tem já saudades sentidas e irresistíveis dos tempos idos da infância.

   Não é na verdade coisa de se admirar, porque em tempos de mudança acelerada como o nosso muita coisa pode mudar nos três ou quatro anos informes que separam a adolescência da infância. Nostalgia é o clamor por pontos de referência que não existem mais, e na vertigem do século inúmeras referências perdem-se, transformam-se ou são substituídas em um ano ou dois, às vezes menos.

   Um adolescente pode olhar ao redor e constatar lucidamente que os programas de televisão são outros, o tipo aprovado de música é outro; os brinquedos, os filmes, os heróis – que tudo mudou desde a sua infância recente, pela qual passa a sangrar de nostalgia tão sincera quanto precoce. O mesmo é ainda mais válido para quem passou dos vinte ou trinta anos de idade; quem sobrevive vinte anos num mundo de mudança vertiginosa como o nosso é obrigado a encarar que a realidade mudou tanto a ponto de se tornar meramente reconhecível. Os pontos de referência ruíram, o vento levou, o gato comeu, e a mudança torna-se motivo de ansiedade, a velhice chega antes do meio da vida e a nostalgia consome e oprime.

   O motivo desta nota é lembrar, com inevitável nostalgia, dos tempos em que não era assim. Houve tempo em que o mundo girava sem se fazer notar e as manchas solares não causavam perturbação maior. As pessoas, conta-se, paravam para conversar e comer. Faziam coisas insensatas como serenatas e bilboquês. Nesta galáxia distante de que estou falando os seres humanos eram tão pouco materialistas que podiam dar-se ao luxo de apegar-se a coisas e, para que não tivessem que se preocupar muito com elas, as coisas eram feitas para durar.

   Com cinqüenta anos de idade um homem ganhava o relógio ou o violino do avô, e orgulhava-se de poder colocá-los em uso imediato; com setenta anos, o sujeito usava ainda a caneta ou o serrote que tinha sido do seu pai. Coisas como bengalas, máquinas de escrever, escrivaninhas e panelas, abridores de cartas e até mesmo roupas tinham a sua utilidade prolongada por gerações. Os mecanismos eram menos complexos e as coisas podiam ser eficazmente consertadas. As pessoas lubrificavam as coisas, trocavam seus cabos, lixavam e poliam.

   Como não saltavam na nossa cara exigindo serem trocadas, as coisas tinham um status menor e não eram motivo de ansiedade. Como sobreviviam às pessoas, algumas coisas transcendiam a sua condição e ficavam para sempre ligadas a um ser humano em particular: as pessoas acenavam com “o facão do meu bisavô”, “a poltrona da minha avó”.

   Hoje em dia, e sem qualquer hipérbole necessária, um sujeito de vinte anos já perdeu a conta de quantas vezes trocou de modelo de telefone celular: o seu próprio telefone celular. Salvo como curiosidade, nada sobrevive a uma geração; nada com mais de dez anos é concebivelmente útil.

   O paradoxo é que, como tudo que está disponível é tão irreversivelmente novo, tudo torna-se obrigatória e imediatamente velho. Mais do que nossos bem-intencionados avós poderiam imaginar, a abundância do novo deixou-nos cercados de coisas invariavelmente velhas e envelheceram as nossas almas. Das velhas fotografias, eles nos olham com peles e olhos mais jovens do que jamais chegaremos a ter.

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Mais uma vez um texto fora do comum do Paulo Brabo da  Bacia das Almas, isso já está virando comun agora que ando sem tempo inspiração para postar alguma coisa.

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