quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Sobre o Sexo

   O horror que cristãos de todas as estirpes nutrem ainda contra o corpo, contra o prazer sensorial e contra a sexualidade não se origina na herança da Bíblia hebraica, na tradição dos apóstolos ou no ensino de Jesus. Ao contrário: nosso pessimismo sexual não tem suas raízes na tradição bíblica, mas na influência exercida pelos filósofos estóicos e gnósticos sobre os cristãos dos quatro primeiros séculos.

   Os filósofos estóicos prescreviam o controle completo da vontade sobre as paixões e as emoções. Seu ideal de humanidade era em tudo semelhante ao personagem Dr. Spock da série Jornada nas Estrelas original: um homem que busca honestamente a virtude, mas desconhece o tráfico, tipicamente humano, com as frustrações e os prazeres. Dos estóicos (como Sêneca, tutor de Nero) herdamos a hipervalorização do celibato e a idéia da abstinência dentro do casamento como coisa virtuosa. Os estóicos ensinaram-nos a noção extrabíblica de que todo prazer sensorial é uma ameaça e uma tentação, e que portanto a única atividade sexual legítima é a que visa a procriação.

   Os gnósticos, por sua vez, criam que o mundo físico não era obra de um Deus bom, mas de demônios, e que a incorpórea alma humana era a única centelha de verdadeira luz neste lodaçal de matéria. Dos gnósticos herdamos o desprezo pelo corpo, a demonização da matéria, o desprezo pela experiência sensorial e a hipervalorização do ascetismo.

O cristianismo reduziu a moralidade à moralidade sexual.

   Foi a influência dessas idéias, e não a leitura dos Testamentos, que criou a postura de gente como Agostinho, que só admitiu depois de muita hesitação a possibilidade de Adão e Eva terem mantido relações antes da Queda; mas o sexo antes do pecado, garantiu Agostinho, teria sido operação necessariamente santa e portanto mecânica, inteiramente isenta de prazer. Pela mesma razão Maria, mãe de Jesus, teve sua sexualidade cauterizada de modo a permanecer eternamente virgem, mesmo durante e depois do parto de Jesus. Seria coisa inconcebível, assegurou o papa Sirício no terceiro século, que Maria se rebaixasse à “intemperança” do prazer sexual; inconcebível que seu útero, “aquele átrio do rei eterno”, fosse “maculado pela presença [posterior] do sêmen masculino”.

   Com a assimilação do pessimismo estóico e gnóstico, o sexo e o prazer passaram a ser vistos a uma luz cada vez mais negativa, mesmo dentro do casamento, até que o celibato completo passou a ser requerido dos líderes eclesiásticos. Na equação do negativismo sexual, sexo nenhum equivale a nenhum prazer, e nenhum prazer equivale a muita virtude.

   Consolidava-se assim, nos primeiros séculos do cristianismo e graças a uma influência alienígena à visão de mundo bíblica, uma tendência que nem os ajustes da reforma protestantem seriam capaz de abalar: para o cristianismo histórico, a moralidade ficou para sempre reduzida à moralidade sexual.

   Perdemos assim a sanidade da visão judaica a respeito do sexo e do prazer, que é favorável e celebratória e nada tem de neurotizada. Ainda mais importante, perdemos de vista o coração do ensino de Jesus sobre ética e santidade. Como deixam claro os evangelhos, a postura e o ensino de Jesus requeriam uma profunda revisão na nossa rasteira noção tradicional de moralidade. Afinal de contas, o mesmo Jesus que comia e bebia com gente de má fama, que via heróis em prostitutas e marginais e tinha prazer na companhia de pecadores, enxergava corrupção e podridão na vida dos carolas, devotos e santinhos da sua época. Para Jesus, como espetacularmente demonstrado no Sermão do Monte, nada é simples na moralidade, especialmente o reducionismo: nossa tendencia a nos sentirmos seguros na abstinência e a tendência correspondente de condenarmos os outros em seus excessos.

   Cegados pelo falso brilho do estoicismo e pelas promessas tortas do gnosticismo, os cristãos eliminaram de forma brutal todas as sutilezas do ensino de Jesus sobre a moralidade, e passaram a proclamar a má nova – tudo que dá prazer é pecado – ao invés da boa – não há ninguém sem pecado, por isso a graça da aceitação está disponível para todos.

   Hoje, dois milênios depois, permanecemos reduzindo religiosamente a moralidade à esfera sexual. Jesus não tolerava a mentira, a ganância, o orgulho e a crueldade; nós toleramos tudo isso, mas quem não se submeter aos nossos elevados padrões de moralidade sexual terá de ser excluído do nosso meio.

   Os católicos permanecem obcecados com o celibato e com a contracepção; os protestantes permanecem obcecados com a virgindade antes do casamento e com a homossexualidade. A mentalidade evangélica permite a exploração de pessoas pelo capitalismo e a alienação social que ela ocasiona, mas não tolera a união sexual antes da sanção reparadora do sacerdote. O Vaticano ensina que padres não podem casar-se, e trata como embaraçosa infelicidade o fato de que tenham de recorrer eventualmente a meninos. A igreja evangélica norte-americana, patrocinadora ideológica dos avanços militares dos Estados Unidos, é reconhecida, essencialmente, pela sua postura antihomossexual; ou seja, um homem pode matar outro, mas não pode beijá-lo. As campanhas católicas contra o uso de anticoncepcionais são reflexos contemporâneos da antiga luta estóica contra o prazer; a única função legítima do sexo, como ensinava Sêneca, deve permanecer a procriação.

   Para os cristãos do terceiro milênio, toda imoralidade – a única verdadeira imoralidade – é sexual. O inquietante é que, com o passar do tempo, perdemos a capacidade de ver que não há nessa postura nenhum traço de Jesus, do Antigo Testamento ou dos apóstolos. Pela familiaridade com o nosso próprio discurso, tornamo-nos inteiramente incapazes de reconhecer nossa neurose sexual.

   Ao contrário, o que fazemos constantemente é acusar o mundo contemporâneo de ser obcecado com sexo. Pode ser hora de reconhecer que, depois de milênios do nosso exemplo, eles simplesmente aprenderam conosco.


O autor desse texto é Paulo Brabo.
Disponível em: www.baciadasalmas.com

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