Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o
outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a
Deus e a Mamom. Mateus 6:24
A fim de manter a sua supremacia por um período significativo de tempo, um sistema religioso precisa sustentar valores e idéias que parecem evidentes por si mesmos à maior parte dos membros de uma sociedade. As principais idéias de um sistema religioso têm de ser naturalmente transferíveis às novas gerações, sem que precisem ser ensinadas diretamente; os desvios da norma, os hereges, devem por sua vez ficar evidentes e ser excluídos por um mecanismo instintivo de rejeição logo que se manifestam.
Há pelo menos três séculos o cristianismo como sistema religioso formal da civilização ocidental foi substituído pela crença universal no capitalismo. O capitalismo (leia-se, e em inglês, way of life) provou-se por todos os critérios o sistema de crenças mais bem sucedido da história.
Isso porque, como qualquer muçulmano pode facilmente apontar, o capitalismo é uma religião como qualquer outra – apenas mais enraizada e muito mais difícil de converter. Embora a história do sucesso do cristianismo e do capitalismo ocidental andem até certo ponto de mãos dadas, os sistemas de segurança e multiplicação do capitalismo como sistema de fé são infinitamente mais estanques e bem amarrados do que os do cristianismo jamais foram.
Alguns valores subjacentes ao cristianismo (como, digamos, a ênfase na humildade e no sacrifício pessoal) nunca tiveram apelo diante do cidadão comum como as seduções embutidas no capitalismo.
Já foi dito e comprovado que em outro tempo as esperanças instiladas pelo cristianismo permitiram que ele servisse como instrumento de domínio e controle por parte das classes superiores.
Os mecanismos de defesa e autopropagação das duas religiões, no entanto, são muitos semelhantes e denunciam uma origem comum. Durante o período de supremacia do cristianismo institucional qualquer cidadão que ousasse propor uma alternativa ao cristianismo ortodoxo era imediatamente taxado, condenado e convenientemente eliminado da discussão como herege; nos dias de hoje, qualquer cidadão que ouse propor uma alternativa ao capitalismo ortodoxo (como fazem, por exemplo, os proponentes do software livre e os que advogam leis menos restritivas de copyright) é imediatamente taxado, condenado e convenientemente eliminado da discussão como comunista.
Já foi dito e comprovado que em outro tempo as esperanças instiladas pelo cristianismo permitiram que ele servisse como instrumento de dominação e controle por parte das classes superiores.
O homem comum que acreditava na felicidade numa vida futura não precisava revoltar-se contra as injustiças desta vida. Enquanto o cristianismo era a religião das multidões, diz esse raciocínio, as multidões eram fáceis de controlar e de apaziguar: diante de qualquer insatisfação com uma injustiça presente, bastava acenar com a garantia da justiça eterna.
A verdade é que, com esperanças ainda mais artificiais (e garantias pelo menos tão irreais), o capitalismo alcançou sucesso ainda maior como religião. A diferença de ênfase do capitalismo é na verdade sutil, mas como sistema de domínio da população sua eficácia é infinitamente maior. O homem comum dos dias de hoje não precisa revoltar-se contra as injustiças desta vida porque ele acredita que o sistema é livre e eficiente, e nada impede que ele ascenda na escala social e econômica ainda nesta vida. Esta promessa de mobilidade social, com que lhe acena a sociedade “livre”, é a sua fé inviolável. Não importa quão poucos sejam os que de fato ascendem socialmente como resultado da livre iniciativa (talvez um ainda menor número dos que iam para o céu), mas para a permanência dos sistema basta que a ilusão persista.
As multidões hoje em dia são fáceis de controlar e de apaziguar porque, diante de qualquer insatisfação com uma injustiça presente, basta acenar com a liberdade e a justiça inerentes ao sistema: “se você não chegou ate onde eu cheguei”, dizem em silêncio as classes dominantes, “é porque não tem a mesma garra e a mesma competência que eu. Você poderia ter se esforçado mais, e na verdade ainda pode: a culpa pelo seu fracasso é sua e somente sua”.
Segundo o cristianismo, o mundo é justo porque qualquer pessoa, desde que realmente queira, pode alcançar o paraíso na eternidade. Segundo o capitalismo, o mundo é justo porque qualquer pessoa, desde que realmente queira, pode ficar rica.
Acenando com promessas diferentes, os dois sistemas produzem resultado semelhante e que tende a manter o estado de coisas. No final das contas, quem crê nas promessas do capitalismo é pelo menos tão manipulável e conformado com a sua sorte quanto o mais devoto cristão.Segundo o cristianismo, o mundo é justo porque qualquer pessoa, desde que realmente queira, pode alcançar o paraíso na eternidade. Segundo o capitalismo, o mundo é justo porque qualquer pessoa, desde que realmente queira, pode ficar rica.
O menor sucesso do capitalismo não foi ter apagado do próprio cristianismo qualquer traço de originalidade. Não importa que o Novo Testamento defenda, de uma a outra capa, a humildade, o altruísmo e o comedimento; não importa o “bem-aventurados os pobres” e o “ai dos ricos” de Jesus. O alvo de qualquer cristão ocidental contemporâneo está sincronizado com o capitalismo, não com a ousada mensagem de contracultura que permeia o Novo Testamento.
Para verificar o sucesso definitivo do capitalismo como sistema de crenças basta ver que até mesmo as seitas cristãs alteraram as suas ênfases ideológicas a partir do sucesso irresistível do seu antagonista. Hoje em dia nenhum sistema religioso cristão bem-sucedido ousa acenar com promessas para a vida futura. Para serem ouvidos, incansáveis mensageiros evangélicos despejam em rádios e programas de televisão as mesmas esperanças de prosperidade financeira e pessoal oferecidas pelo capitalismo.
Uma felicidade que não seja para esta vida não interessa aparentemente a ninguém, mas a felicidade prometida para esta vida pode controlar quem quer que seja.
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O título deste artigo é chupado do instigante The Varieties Of Religious Experience – As Variedades da Experiência Religiosa, do psicólogo americano William James, publicado pela primeira vez em 1902. Para fins do seu estudo de “religião natural”, James definia religião como “os sentimentos, atitudes e experiências dos indivíduos na sua esfera privada, no que diz respeito à posição em que eles avaliam-se estar em relação ao que quer que seja que considerem o divino”.
James ficaria surpreendido com o rumo que o seu campo de estudo assumiu nas últimas décadas. O divino hoje em dia é o capital – o nirvana, o crédito ilimitado.
O autor desse texto é Paulo Brabo, do site Bacia das Almas
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