Através de um "inimigo" amigo cheguei a uma postagem do Fernando Gouvêa, mas conhecido na internet como Gravataí Merengue, pseudônimo usado por ele para assinar seus ótimos textos na internet desde 1997. O texto contido na mencionada postagem, por motivos mais do que óbvios, me chamou a atenção e me estimulou a escrever sobre um assunto que, embora eu já tenha abordado, tem estado nos meus planos para esse blog que, como pode ser visto, está esquecido desde novembro do ano passado. Resolvi, então, aproveitar esse estímulo para retomar o blog e escrever não sobre o determinismo que nos impõe nossas crenças (ou descrenças) que deu tom ao texto do Fernando, mas sobre algo que pode ser lido apenas nas entrelinhas: nosso anseio por compensação.
O texto dele, em minha opinião, como grande parte dos escritos humanos, está todo permeado por essa idéia, mas, para ser direto e prático, irei citar aqui apenas os trechos onde a idéia pode ser observada de forma explícita. Segue:
"Não há um único ateu que tenha optado pelo ateísmo e, caso haja caso positivo, trata-se de alarme falso. Porque se trata de constatação, não escolha ou decisão. Diversos religiosos, por exemplo, alegam que ouviram um chamado, viram uma luz ou algo do tipo. O ateu, de tantos silêncios e escuridões, seguidos de gritarias e luminosidades em sentido contrário (ok, parei com metáforas), percebe que as coisas não são como nos livros sagrados das mais variadas crenças. É assim que acontece."
"Seria muito melhor ter certeza de um mundo nos esperando depois da morte, ou ali guardando entes queridos. Seguramente, sem sombra de qualquer dúvida, um ateu chora muito mais o falecimento de uma pessoa amada, diante da idéia de JAMAIS revê-la."
"Há ateus, inclusive, que relutam, tentam, fazem verdadeiro esforço para ter algum tipo de fé. Mas não conseguem."
Esses trechos deixam claro que o Fernando não nega a existência de um certo desejo, comum a todos os homens, que nenhuma felicidade natural é capaz de satisfazer. Essa é uma constatação óbvia, pois todos já tivemos a sensação de carregarmos dentro de nós um vazio que não pode ser preenchido. Isso é demonstrado por sentimentos como nostalgia, romantismo, utopia, carência, angústia, insatisfação e outros sentimentos que, se não forem compartilhados por todos os seres humanos, o são, pelo menos, pelos mais sãos dentre nós. Dostoiévski, por exemplo, dizia que deve (ou deveria) haver um lugar de compensações, pois nesta existência o homem não consegue viver à altura de seus mais nobres ideais — não praticamos todo bem que almejamos, não amamos intensamente, não somos tão bons quanto gostaríamos, vivemos aquém dos nossos ideais e de nossos desejos. A vida, segundo ele, não faria sentido se tais aspirações não fossem saciadas em algum lugar.
Diante de afirmações como essas, podemos afirmar, com Chesterton, que, podendo ou não o homem ser lavado em águas milagrosas, não resta nenhuma dúvida de que ele deseja lavar-se. Ou seja, podemos até negar a água, mas não podemos negar a sujeira — assim como não se pode negar o desejo que todos temos de ter essa sujeira removida. Em outras palavras, podemos até negar a existência do paraíso dos religiosos ou do lugar de compensações de Dostoiévski, mas não podemos negar nosso intenso desejo de que lugares como esses existam.
Estas são afirmações das quais, creio eu, ninguém discorda. É essa a base do ateísmo e é essa também a base do cristianismo. Afinal, se for verdade (como certamente é) que temos desejos que nenhuma felicidade terrena é capaz de satisfazer, só podemos fazer uma dentre duas deduções; ou devemos negar a existência de Deus, como fazem todos os ateus; ou devemos negar a presente união entre Deus e o homem, como fazem todos os cristãos. Negar o desejo não seria, em absoluto, uma alternativa honesta e sensata.
Isto posto, podemos seguir adiante e questionar: há alguma razão para supormos que a realidade ofereça alguma satisfação para esse desejo?
"Nem a fome pode provar a existência do pão" — disse Matthew Arnold. Mas eu acredito que não se trata exatamente disso. A fome física de um homem realmente não prova que ele encontrará pão; ele pode morrer de fome na travessia do Saara ou em uma jangada em pleno Atlântico. Mas, com toda certeza, a fome de um homem prova que ele pertence a uma espécie cujo corpo é restaurado por meio de comida e habita em um mundo onde existem substâncias comestíveis. Da mesma maneira, meu anseio pelo paraíso pode até não ser prova de que eu vá usufruir dele, mas é, acredito, um sinal bastante seguro de que existe algo parecido com o paraíso e de que alguns homens vão encontrá-lo. Um homem pode apaixonar-se por uma mulher sem conquistá-la; pode desejar levá-la pra cama sem conseguir; mas seria algo muito estranho se um homem sentisse isso em um mundo assexuado.
De semelhante modo e como já dito, todos já nos sentimos deslocados, como se de alguma forma não pertencêssemos a esse mundo. Não há, até onde eu sei, uma única pessoa que não tenha chegado a conclusão de que esse é um mundo imperfeito ou que não tenha desejado viver em um lugar melhor. E eu fico me perguntando; como é possível chegarmos a esse tipo de conclusão? Afinal, se fôssemos realmente um mero produto do universo, como poderíamos não nos sentirmos em casa? Será que peixes reclamam do mar por este ser molhado; ou seja, por ser o que é? Ou, se eles reclamassem, não seria isso um forte indício de que eles nem sempre haviam sido, ou de que nem sempre seriam, apenas criaturas aquáticas? Um homem sente o corpo molhado quando entra na água porque não é um animal aquático; um peixe não se sente assim.
Da mesma forma, se nós pertencêssemos a esse mundo não reclamaríamos por ele ser como é. E se o universo inteiro não tivesse sentido, nunca perceberíamos que ele não tem sentido — do mesmo modo que, se não existisse luz no universo e as criaturas não tivessem olhos, nunca nos saberíamos imersos na escuridão. A própria palavra escuridão não teria significado.
Mas, afinal, a fome prova ou não prova a existência da comida? Ora, se não houvesse comida, não haveria fome. Assim como não haveria um desejo por compensação, se não pudéssemos ser compensados.
Portanto, podemos até não ter escutado o chamado ou visto a luz de que falam os religiosos, mas assim como um homem sedento que não encontra água no deserto estaria errado em negar a existência de água, nós estaríamos errados se assumíssemos que o chamado ou a luz não existem apenas porque não escutamos ou vimos.
Ou será que aqueles que dançam sempre deverão ser considerados loucos pelos que não podem ouvir a música?
Autor: Filipe Garcia
Fonte: Emeurgêcia
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