Esta obscuridade chegou a tal ponto que os homens não mais compreendem as noções mais simples, expressas no Evangelho com as mais simples palavras. Hoje, tendo a luz da doutrina de Cristo penetrado até os ângulos recônditos da consciência humana, conforme disse Ele, grita-se de cima dos telhados o que ele dizia ao pé do ouvido; quando esta doutrina se mescla a todas as manifestações da vida doméstica, econômica, social, política e internacional, seria inexplicável que permanecesse incompreendida se para tanto não houvesse causas especiais.
Uma destas causas é que tanto fiéis como ateus estão firmemente convencidos de que compreenderam, há muito tempo, tão completa, positiva e definitivamente a doutrina evangélica, que não é possível atribuir-lhe um significado diverso daquele que lhe é dado. E sua interpretação errônea é fortalecida pela antiguidade da tradição. O rio mais copioso não pode acrescentar uma gota d'água a um copo já cheio.
Pode-se explicar ao homem mais ignorante as coisas mais abstratas, se ele delas ainda não tem noção alguma; mas não se pode explicar a coisa mais simples ao homem mais inteligente, se ele está firmemente convencido de saber muito bem o que se lhe quer ensinar.
A doutrina de Cristo apresenta-se aos homens de nosso tempo como uma doutrina perfeitamente conhecida desde há muito em seus mínimos detalhes, e que não pode ser compreendida de modo diverso do que o é atualmente. O cristianismo é, assim, para os fiéis, uma revelação sobrenatural, milagrosa, de tudo o que é dito no Credo. Para os livres-pensadores é uma manifestação esgotada do desejo que têm os homens de crer no sobrenatural, um fenômeno histórico que encontrou sua expressão definitiva no catolicismo, na ortodoxia, no protestantismo, e que para nós não mais possui qualquer significado prático.
A importância da doutrina é ocultada dos fiéis da igreja e dos livres-pensadores da ciência. Comecemos a falar dos primeiros. Há 1.800 anos, em meio ao mundo romano, surge uma nova doutrina, estranha, nada semelhante a nenhuma das que a haviam precedido e atribuída a um homem, Cristo. Esta doutrina era inteiramente nova (tanto na forma, quanto na substância) para o mundo judaico que a tinha visto nascer e sobretudo para o mundo romano, onde era pregada e propagada.
Em meio às complicadíssimas regras religiosas do mundo judaico — onde, segundo Isaías, havia regra sobre regra — e à legislação romana, levada a um alto grau de perfeição, surge uma nova doutrina que negava não apenas todas as divindades, como também todas as instituições humanas e suas necessidades. Em troca de todas as regras das antigas crenças, esta doutrina não oferecia senão um modelo de perfeição interna, de verdade e de amor na pessoa do Cristo e, como conseqüência desta perfeição interna, a perfeição externa, preconizada pelos profetas: o reino de Deus, no qual todos os homens, não mais sabendo odiar, serão unidos pelo amor, e no qual o leão estará frente ao cordeiro. Ao invés de ameaças de castigo para as infrações das regras ditadas por antigas leis religiosas ou civis, ao invés da atração das recompensas por sua observância, esta doutrina só atraía por ser a verdade.
“Se alguém quiser cumprir Sua vontade, saberá se minha doutrina é de Deus ou se falo de mim mesmo" (Jo 7,17). "Vós, porém, procurais matar-me, a mim que vos falei a verdade" (Jo 8,40), "e a verdade vos fará livres. Não devemos obedecer a Deus senão com a verdade. Toda a doutrina será revelada e compreendida pelo espírito da verdade. Façam o que Deus lhes manda e conhecerão a verdade" (Jo 8,36).
Nenhuma outra prova da doutrina foi apresentada além da verdade, a adequação da doutrina com a verdade. Toda a doutrina consistia na busca da verdade e em sua observação, na efetivação cada vez mais perfeita da verdade e do desejo de dela se aproximar, sempre mais, na vida prática. Segundo esta doutrina, não é por meio de práticas que o homem se torna justo.
Os corações elevam-se à perfeição interna através de Cristo, modelo de verdade, e a perfeição externa pela efetivação do reino de Deus. O cumprimento da doutrina está no caminho da estrada indicada, na busca da perfeição interna pela imitação de Cristo, e da perfeição externa graças ao estabelecimento do reino de Deus.
A maior ou menor felicidade do homem depende, segundo esta doutrina, não do grau de perfeição que ele pode alcançar, mas do seu caminho mais ou menos rápido para esta perfeição.
Liev Tolstói em, O Reino de Deus está em Vós.