Eu já estava em Pomerode, naquele cruzamento na frente da delegacia, quando olhou-me de repente a placa da saída para Timbó; lembrei-me inevitavelmente de Rio dos Cedros e de seu profeta, e decidi alongar a viagem por meia hora – ver se encontrava coragem para encarar novamente o homem que olhou o pecado no meu rosto e não viu nada de mais no que viu.
Avancei sem parada na tarde oblíqua e dourada, cruzando arrozais de um verde-limão inclemente e casinhas vermelhas encravadas em jardins de rosas. Quando fechei atrás de mim a última porteira e fiz o Corsa descer crepitando a curva ladeada de jerivás, faltava pouco para as seis da tarde.
Eu havia tirado meias e sapatos assim que entrara no carro, portanto antes de sair só afrouxei a gravata e enrolei duas vezes a barra da calça. Caminhei descalço pelo caminho de lousa até o portãozinho da cerca do jardim, gritei ô de casa, e quando venci os dois degraus da varanda já havia terminado de dobrar até os cotovelos as mangas da camisa branca.
Todas as portas e janelas da casinha de madeira estavam abertas, pelo que demorei a entender que estava vazia. Na varanda de trás (dei a volta por fora) encontrei uma mesa de madeira maciça, um fogão a lenha e um tanque escavado em pedra, abastecido sem trégua pela água de um aqueduto de meia taquara que desaparecia em direção ao morro vizinho. Retirei uma caneca de metal do prego em que pendia e bebi.
Devolvi a caneca, ponderando voltar para o carro e refazer o caminho, anulando por completo aquela tentativa e ganhando pontos para dizer um dia estive aqui e você não estava. Olhei o relógio do celular: cinco e quarenta e quatro. Decidi ir embora imediatamente e em outra ocasião explicar que havia esperado em vão das cinco e meia até as seis. Nesse ponto, no interior da casa, alcançou-me da mesa da cozinha uma visão potente o bastante (talvez a única) para me fazer abandonar o plano de fuga: uma pilha de livros.
O profeta de Rio dos Cedros entrou em casa meia hora depois, batendo uma contra a outra as solas de suas botas de borracha, e encontrou-me lendo fábulas de La Fontaine na mesa da sua cozinha. Os outros livros eram Sobre a origem da desigualdade, de Rousseau, A origem da família, da propriedade privada e do estado, de Engels, Almas Mortas, de Gogol e – o único que eu ainda não havia lido – o panfleto de quatro páginas Teses sobre Feuerbach, de Marx.
– Brabo, você voltou – ele disse, e parecia sinceramente feliz, mas antes de entrar lavou no tanque lá fora as mãos, os pés e uma braçada de raízes de aipim que trouxera numa sacola.
– Meu amigo proletário João do Pó! Desculpe aí ir entrando desse jeito – eu disse, mas ele desconsiderou com um balanço da cabeça e produziu de detrás de uma cortina estampada uma gamela com ameixas vermelhas e pêssegos.
Dez minutos depois as mandiocas cozinhavam no fogão e cada um de nós tinha diante de si um copo com partes iguais de Campari, gelo, vinho branco barato e água com gás, consagrados com uma fatia de laranja.
– E eu que não tinha lido esse livrinho de Marx – eu disse, querendo desviar a conversa. – Quando vi a casa vazia estava decidido a ir embora, mas tive de ficar pra falar com você sobre ele.
– Confesso que não li nada desse teólogo de quem Marx está falando, mas parece que não é preciso ter lido para entender.
– Você vai gostar de Feuerbach, mas sim, Marx está aparentemente falando consigo mesmo – puxei o panfleto do topo da pilha de livros e deixei que abrisse pousado na minha mão aberta. – A prática revolucionária. Eu não conhecia esse lado politizado de João do Pó.
Ele limitou-se a sorrir e sorver um gole.
– Pelo que entendi Marx está enfezado com o materialismo – ele opinou, – que embora seja a mais desiludida e terra-a-terra das ideias, ainda assim não passa de uma ideia. Nada no mundo dos conceitos basta para produzir a prática revolucionária que pode mudar o mundo, et cetera.
– Exato. Até aquele ponto a história da filosofia havia representado uma revolução arquival, por assim dizer. Os filósofos tinham em seu favor haver catalogado todos os problemas, todas as causas e todas as soluções, mas nada daquilo corria o risco de vazar dos arquivos das ideias para o mundo real.
– Como é mesmo que ele diz no final? – ele riu consigo mesmo, passando a mão pela cabeça raspada. – A última coisa?
– “Os filósofos têm se limitado a interpretar o mundo de maneiras diferentes” – eu li, imprimindo o devido drama ao cenário de dois homens discutindo filósofos mortos numa casinha de madeira no meio do nada debaixo de um céu límpido orlado por iminentes tempestades de verão. – “A questão, porém, é transformar o mundo.”
– É quase “a fé sem obras é morta”, não é verdade? – ele provocou, e ignorei a provocação.
Nesse momento a luz na cozinha piscou duas ou três vezes antes de apagar por completo, e ouvimos a geladeira tremer e silenciar. Agora só se ouviam os sapos que malhavam ferros no banhado entre o morro e a casa.
– Está sempre chovendo em algum lugar – ele lembrou.
– O bastante para sempre apagar a luz de outro – eu disse, e coloquei o celular em cima da mesa para que ele nos cinzelasse minimamente com sua vigília azul.
– Enfim – ele disse, brincando com a tampa de Campari como se quisesse fechar a garrafa, sem nunca chegar a concluir a tarefa, – houve uma época em que o que a revolução desejava era remover um sistema estabelecido de coisas e colocar outro sistema no lugar. Se a realidade resistisse à mudança, como costumava fazer, para promover a revolução era tido como necessário apelar para a violência.
– Como assim, “houve um tempo”? Não é mais assim?
– Faz algum tempo que não – ele olhou-me muito sério para confirmar. – O capitalismo, que se apropria de tudo e reverte em seu favor, apropriou-se por inteiro do discurso da revolução.
– Che Guevara é uma marca numa camiseta que você quer comprar.
– Justamente – ele ajeitou-se na cadeira, – mas não só isso. A revolução está em todo lugar; impossível agora é escapar dela. A mudança é o presente sistema, e o capitalismo se alimenta precisamente disso. Hoje um produto é que é “revolucionário”. A internet é revolucionária. Os conservadores costumavam ser os que resistiam à mudança; hoje em dias, conservadores são os que creem que a mudança é a única coisa que existe.
– Tornando dessa forma a verdadeira revolução impossível.
– Não completamente. Hoje em dia para fazer violência ao sistema é preciso rejeitar a mudança em vez promovê-la.
– Uma violência de abstenção? – bebi um gole para dissimular um mal-estar que eu sabia só tendia a crescer.
– Para fazer violência contra a revolução do capitalismo é preciso abrir mão da revolução. É preciso escolher as margens. É preciso pisar para fora do sistema.
Ele silenciou, arrependido do uso excessivo de ênfases, mas aparentemente muito interessado na minha reação.
– Não me parece muito eficaz a sua revolução – fiz com um copo um gesto que abarcava a propriedade. – Você não tem televisão em casa, mas um bilhão de brasileiros está assistindo o Big Brother.
– É como uma revolução qualquer – ele relaxou na cadeira. – Para que funcione é preciso ver mais gente aderindo à violência contra o sistema. Abster-se da revolução é agora a prática revolucionária.
Baixei o copo e ponderei um longo tempo o que queria dizer.
– Nas revoluções anteriores era muito fácil conseguir a adesão das massas, porque o novo sistema a ser implantado oferecia vantagens muito evidentes. Já ninguém vai querer abrir mão da tecnologia e do capitalismo, como você faz, porque não há vantagem nenhuma nisso. Nenhuma vantagem evidente, quero dizer.
– O problema é que o capitalismo é uma revolução que esconde os próprios custos. É um produto que cada um deve vender a si mesmo, por assim dizer, um dia após o outro. E todos compram, porque o dia seguinte depende dessa venda.
– Tenho de reconhecer – baixei a voz, mas foi sem querer, – que a mais simples das operações, que é manter-se vendável (isto é, manter-se produtivo), requer o espaço da vida inteira. Mas, para quem está dentro, apenas o custo de sair do sistema parece maior. Tecnicamente todos sabem que não precisam de um novo celular, mas a revolução é exigente. E talvez por isso irresistível.
– Você entende agora por que O Senhor dos Anéis é uma metáfora tão adequada para o nosso tempo? – ele finalmente fechou a garrafa e colocou-a de lado. – Entende por que a trilogia de Tolkien exerce um fascínio tão grande, mesmo sobre os que não sabem articular a coisa nos nossos termos?
Levantei as sobrancelhas, sinceramente embaraçado, porque não via a conversa tomando aquela direção.
– Não tenho certeza – concedi. – A coisa que mais gosto no livro é que a solução corporativa falha miseravelmente, e o herói remanescente e eficaz só sobrevive inteiramente marcado pela amargura.
Ele sorriu.
– É formidável, mas não é disso que estou falando.
– E do que estamos falando?
– Da revolução – João do Pó cortou mais uma fatia de laranja e derrubou no seu copo. – Tolkien moldou sua história a partir dos grandes épicos e clássicos que tanto admirava, mas com uma diferença. As antigas epopeias narravam a busca por algum objeto poderoso, e as dificuldades que os heróis encontravam no caminho.
– Entendi – senti o rosto queimar, mas entendi também que o profeta faria questão de articular por completo o seu argumento.
– O Senhor dos Anéis é precisamente o contrário. Se você pensar, é uma anti-busca. O desafio dos heróis é destruir um objeto poderoso, não encontrá-lo.
– E fica demonstrado que não é nada fácil.
– Especialmente porque o poder representa uma tentação para os próprios heróis. Quem vai querer abrir mão de um artefato que representa uma vantagem tão evidente?
– Pouca gente – concordei. – E mesmo os que o fizerem estarão marcados para sempre pela tentação de possuí-lo.
– O desafio da nossa era – ele disse – não é outro.
Nesse momento um vaga-lume aceso, que não tínhamos notado quando entrara, voou ao redor de nós como uma fada e pousou precisamente no topo da garrafa que nos separava.
Calamos os dois, o pensador de gravata e o pensador com terra debaixo das unhas das mãos. Estávamos ambos descalços, e de fato nossos pés se tocavam sem grande constrangimento debaixo da mesa, mas aparentemente não seguíamos para o mesmo lugar. Ou a mesma pessoa.
Então, pela moldura de tela que protegia a porta aberta da frente, vi que alguém se aproximava pelo pasto escuro guiado por uma lanterna.
– Você está esperando alguém para jantar? – eu perguntei, e meu tom, para meu embaraço, foi quase de repreensão.
– Nunca espero ninguém, mas isso não quer dizer que qualquer um não possa chegar – ele explicou, e ouvimos que se abria o portãozinho do jardim.
Cinco minutos mais tarde esvaziei o copo, pedi licença e lembrei que estava na hora de ir indo.
Autor: Paulo Brabo postado em Bacia das Almas